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Viagem a Berlim, facetas de história

Viagem a Berlim, facetas de história

Bertha Pappenheim

Sumário

A autora explica e reflete sobre os motivos que a levaram a traduzir o texto exposto no painel: “Freud, freudianos, Jung e os junguianos nos anos 1930 e durante o regime nazista”, apresentado no Congresso Internacional de Psicanálise, em  Berlim, em julho de 2007.

Abstract

The author explains and reflects on the reasons that led her to translate the text exhibited on the panel: “Freud and the Freudians, Jung and the Jungians in the thirties and during the Nazi Regime”, presented at the International Congress of Psychoanalysis in Berlin, in July 2007.


No princípio de 2007, meu interesse foi despertado pela leitura de um livro que relatava a saga das polacas, prostitutas judias traficadas para o Brasil e a Argentina, no começo do século passado (cerca de 1890), por cafetões judeus.

A Europa Oriental vivia um período de miséria, e para os judeus, além da miséria, os guetos e as perseguições eram fatais para a sobrevivência. Rufiões judeus percorriam os vilarejos pobres, escolhiam as pequenas meninas, com as quais se casavam nas sinagogas, e traziam-nas para a América do Sul com promessas de luxo e riqueza.

Houve um dado que chamou minha atenção – percebi que Bertha Pappenheim (1859-1936), codinome de Anna O, de Freud (a cliente que nomeou o método talking cure), foi extremamente importante nessa história.

Bertha descobriu o que se passava e começou um movimento em toda a Europa, ajudada por outras mulheres que ela conseguiu congregar, tentando retirar dos navios que embarcavam para a América do Sul as jovens que desconfiava estarem sendo traficadas (as escravas brancas). Parece ter sido esse o início de um dos primeiros movimentos feministas organizados de que se tem notícia.

Ao que consta, ela conseguiu salvar algumas centenas de jovens e fundou na Alemanha, onde morava, um lar para elas e as crianças que já carregavam no ventre (esse lar foi totalmente destruído e queimado na famosa Noite dos Cristais).

Imersa na biografia de Bertha, recebi um comunicado por internet de um painel que haveria em Berlim. Tratava-se do painel “Freud, freudianos, Jung e os junguianos nos anos 1930 e durante o regime nazista”. Seria apresentado no Congresso Internacional de Psicanálise, em  Berlim, em julho de 2007.

Eu nunca estivera na Alemanha, mas dessa vez achei que poderia aproveitar a oportunidade e não somente aprofundar meus conhecimentos sobre Bertha (coincidentemente o nome de minha mãe), mas também ter a oportunidade de assistir ao painel.

Fui, mas com um pouco de medo. Seria bem recebida? Discrimada? Afinal, estava indo para a Alemanha (sou judia) e para um Congresso de Psicanálise (sou analista junguiana), mas fui.

Berlim é uma cidade linda, cheia de histórias e História. Fiquei encantada e espantada. Encantada com a cidade e seus cidadãos, espantada com a fala do doutor Jörg Rasche, analista junguiano, membro do Instituto C.G. Jung de Berlim eleito logo a seguir vice-presidente da Sociedade Internacional de Psicologia Analítica.

Gostaria de relatar minha vivência dessa viagem, falar tanto das sensações que tive ao assistir a conferência quanto ao me aprofundar nas leituras.

Ser judia e junguiana seria impossível sem uma reflexão mais profunda dos significados da História e das histórias.

Segundo Merleau-Ponty (Os Pensadores, pág. 233), História não é ciência, é uma escolha de quem fala. A partir do século XIX, lidar com acontecimentos que são conhecidos através de documentos depende, portanto, de quais são esses documentos e por quem eles são lidos.

Estudando atentamente a conferência do doutor Jörg Rasche, lendo o livro Lingerig Shadows, que compila os textos de um seminário realizado em Nova York, em 1989, sobre o mesmo tema do painel de Berlim – Freud, Jung e anti-semitismo –, pesquisando vários textos de psicanalistas e outros junguianos, pude perceber que os mesmos parágrafos, falas e trechos de cartas são usados por ele e por outros autores de maneira, às vezes, quase antagônica.

Os mesmos trechos ora são citados como provas do comprometimento de Jung, ora são usados como provas de sua inocência com relação à acusação de anti-semitismo.

Caberia aqui uma longa discussão com citações de autores os mais variados. No entanto, meu foco é a emoção que senti ao ouvir o doutor Jörg Rasche.

Trata-se de falar de sombra e do mal, em nós e nos outros seres humanos, e de quanto damos conta de fato de um confronto desse tipo. Falar de vítima e algoz, de forte e fraco, de dominador e dominado e etc…

Ao assistir à conferência do doutor Jörg, meu coração ficou tocado, enternecido por ver uma pessoa, um alemão, ser capaz de aprofundar-se tão humildemente em uma responsabilidade coletiva que diferencia a culpa previamente estabelecida, da qual fazia parte como ser humano.

Tal diferenciação se baseia na constatação de que não se pode culpar alguém por atos que não cometeu. No entanto, por termos um mundo em comum e vivermos em comum na esfera pública, é nessa esfera que assumimos responsabilidades que afetam a todos. Obviamente, o grau de responsabilidade e culpa varia.

O doutor Jörg. não apenas demonstrou ser um ser humano sensível, mas sim, mostrou-se, principalmente, capaz de dividir responsabilidades, justamente por ser “humano”. Agindo dessa forma, não somente redimiu-se do lugar de algoz, mas retirou-me instantaneamente do lugar de vítima, fardo pesado e enfraquecedor, conflito esse que se não elaborado envolve seguramente mais guerra.

O lugar da vítima-algoz parece não só impedir esta reflexão, mas impedir elaborações criativas. Essa é talvez a grande sombra que podemos atribuir a Jung: não ter podido refletir sobre seus erros e admiti-los publicamente.

O mundo mudou muito depois de 1945, e o Holocausto judaico, a meu ver, não é mais cruel do que aquilo que ocorre com várias etnias e grupos de pessoas. Estou falando, inclusive, das atrocidades praticadas por israelenses contra vários palestinos.

Nestas eras tão confusas e terríveis, não podemos mais nos esquivar de confrontos que buscam uma compreensão da natureza humana. Mesmo que cada vez a vida e a obra – melhor ainda, a totalidade de uma vida e de uma obra – tivessem sido perfeitamente decifradas, estaríamos apenas diante de uma história. Como analistas, sabemos muito bem quantas facetas uma história pode ter.

Esquivarmo-nos de confrontar as responsabilidades do homem Jung, durante o período nazista, nos fragiliza como junguianos perante a sociedade como um todo e perante nós mesmos. Evitam-se com isso confrontos importantes na atualidade, inclusive no interior de nossas sociedades.

Eis porque decidi traduzir o texto do doutor Jörg. Bom proveito.

Brenda Gottlieb
Psicóloga Junguiana membro da SBPA
(11) 98116-7788
brendago2009@hotmail.com

Referências bibliográficas

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  • Medweth, Mark: Jung and the Nazis. Online journal Psybernetika at Simon Fraser University;
  • Reisdorfer, Ulianov: Um Momento Perigoso: Jung e o Nazismo. Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento de Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas sob a orientação da Profa. Dra. Amnéris Ângela Maroni;
  • Vincent, Isabel: Bertha, Sophia e Rachel ,a sociedade da verdade e o tráfico das polacas… Editora Relume-Dumara.

“Jung e os Junguianos nos anos 1930 e durante o regime Nazista”- Painel no Congresso Internacional de Psicanálise- Berlim- Julho, 2007.
Jörg Rasche
Tradução: Brenda Gottlieb
Tentar entender e perdoar não é a mesma coisa.

Caros colegas,

Sinto-me honrado de ter a chance de falar a vocês sobre a história de C.G. Jung e dos Junguianos nos anos 30. É uma honra, e ao mesmo tempo um reencontro doloroso com o pior período da história de meu país, de meus pais, da minha profissão. Também é um encontro com vocês da IPA (Sociedade de Psicanálise Internacional) que suponho, não estão muito familiarizados com a teoria Junguiana em geral e que são bastantes críticos sobre a suposta atuação e comportamento de Jung durante o período de irrupção da barbárie nazista. Alguns de vocês talvez estejam em Berlim pela primeira vez depois do fim da guerra ou após o fim do sistema totalitário oriental. Alguns de vocês talvez sejam da segunda ou terceira geração após o holocausto. Em muitos treinamentos psicanalíticos, as memórias de perseguição, emigração, de perda, de desapontamento ainda estão vivas mesmo após gerações ou sendo transmitidas de uma geração à outra.  Sabemos que o trauma coletivo de uma guerra necessita várias gerações para ser integrado de alguma maneira e que o trauma do holocausto jamais poderá ser curado. Entendo que alguns colegas Judeus somente queiram ser aceitos e honrados em suas dores e lutos e que alguns não queiram dividir seu luto conosco.

Nós, Junguianos alemães, estamos tentando entender o que aconteceu, para estarmos tão atentos e conscientes quanto possível do que está ocorrendo conosco e com nossa sociedade no que se refere aos complexos inconscientes para assim, podermos prevenir qualquer repetição. Também queremos expressar nosso remorso e compaixão.

Falar a vocês como Alemão e Analista Junguiano, significa falar de minha identidade profissional tanto na luz como na sombra da história Junguiana na Alemanha. Quero fazer duas observações preliminares antes de entrar, no que de fato, ocorreu nos anos ao redor de 1930. Estas ressalvas referem-se à Psicologia Analítica e a uma espécie de continuidade.

  1. Psicologia Analítica atualmente é algo diferente do que era em 1930. Na prática pós-Junguiana na Alemanha, as dimensões inter-pessoais da transferência e contratransferência e a elaboração emocional dos conflitos são certamente muito mais centrais hoje em dia, e vários conceitos, Freudianos e Neo-Kleinianos de desenvolvimento, também foram incorporados e são considerados importantes para nós atualmente. Todavia o trabalho de sonhos do modelo junguiano, as técnicas imaginativas e criativas, os conceitos de arquétipos com seus símbolos curativos e do Self, a teoria de complexos culturais e o Processo de Individuação, ainda são as bases comuns das diferentes escolas junguianas de hoje. Uma especial atenção é dispensada para o que se passa no inconsciente coletivo. Sabemos inclusive, graças ao triste exemplo do próprio Jung, algo a respeito das dificuldades neste campo. Para o movimento moderno Junguiano (Neo- Junguianos), o trabalho a ser feito de análise do passado é essencial, especialmente porque o próprio Jung aparentemente pouco se ocupou deste trabalho, bem como de uma autocrítica quanto a si mesmo depois da Guerra.

A percepção de tendências inconscientes era uma preocupação especial de meu analista durante meu período de treinamento como analista com o Dr. Dieckmann. Quando jovem, ele serviu o exercito, e mais tarde, admitiu que se alistou como um nazista. Ele era muito ingênuo e quando voltou, felizmente, ao término da guerra, em 1945 e viu as primeiras fotografias dos Campos de Concentração disse: “Isto eu não sabia”, ao que um colega retrucou: “É claro que você sabia sobre isto, mas você não queria saber”. Dieckmann aprendeu algumas coisas sobre mecanismos de defesa e resistência e submeteu-se a formação analítica. Esteve sempre muito preocupado em não estar suficientemente atento a tendências inconscientes, em si próprio e na sociedade. Nos anos 70, foi um dos primeiros a explorar a omissão coletiva na crise ecológica mundial. Foi o fundador do Instituto C.G.Jung de Berlim e o responsável pelo restabelecimento da Sociedade Alemã de Psicologia Analítica (DGAP) em 1961. Em 1983, foi eleito o primeiro presidente alemão da IAAP, em Jerusalém.

  1. Continuidade Inconsciente: Meu pai foi um médico que ingressou no exército. Despertei politicamente no movimento estudantil berlinense dos anos de 1967/1968. Nesse movimento, perguntamos a nossos pais o que eles realmente haviam feito durante a Guerra e como era viver durante o período de ditadura. Isto era um taboo absoluto na Alemanha pós 1945. Uma mistura de vergonha depois da derrota, de negação, de contestação e mesmo de dissociação emocional e cognitiva levou a uma nebulosa teia de ignorância e a um sentimento generalizado de irrealidade. Essa foi minha experiência ao longo de minha infância e período escolar. Sob essa teia, uma dissociação paranóica espreitava os complexos culturais da sociedade Alemã nos anos 50 e 60 – tanto na parte ocidental da Alemanha como no leste totalitário. A Guerra do Vietnã e a crise mundial de 1968 trouxeram uma nova dinâmica. Começamos a nos defrontar com a realidade histórica e emocional de nosso próprio país. Então, após o assassinato de um estudante pela policia durante um protesto nos postos avançados da Berlim Ocidental, – cercados pelo arame farpado eletrificado-, a remanescente atmosfera paranóica dos tempos anteriores a 1945 vieram à tona e algumas medidas legais foram retomadas de ambos os lados. Mas isto também foi o começo de uma nova consciência democrática.

Conto-lhes essas historias porque a História e o significado do movimento analítico na Alemanha não podem ser compreendidos, sem que se reflita sobre o rol das tradições e dos taboos transmitidos das catacumbas de silêncio, com a conseqüente vergonha e dor, que resultaram num forte compromisso com a democracia.. Jung também é parte desta historia.

Quero agora falar sobre Jung e os Junguianos dos anos 1930. Os meados dos anos 1920 foram, inicialmente, uns muito breves períodos de reconstrução e estabilidade na Republica de Weimar, com seu Ministro do Exterior, Stresemann, bem como de uma modernização cultural. Mas não havia uma base estável para a democracia. O partido de Hitler, NSDAP, tomou o poder em 1933, após um período de terror, apoiado pela indústria. A guerra estourou em 1939. Lermos alguns pronunciamentos de Jung deste período é chocante, repulsivo e escandaloso-e para mim, como um alemão, -vergonhoso-, mesmo Jung não sendo alemão e sim suíço, com uma mentalidade diferente, em uma situação social e política completamente diferente da nossa.  Pior: como um cidadão suíço, ele teve a chance de fazer pronunciamentos contra os Nazistas desde o começo. .

No inicio dos anos 30 Jung já era bastante conhecido, tanto na Europa como na América como Psicoterapeuta e psicanalista, que havia deixado para trás as limitações das teorias Freudianas. Ele também era uma espécie de portador de projeções para atitudes anti-semíticas e ressentimentos anti-psicanalíticos desde seu rompimento com Freud. O próprio Jung demonstrou ao longo de toda sua vida seu desapontamento e suas reservas com relação a Freud. Ele era aproximadamente 20 anos mais jovem do que Freud e em 1933 quando os Nazistas tomaram o poder político na Alemanha ele tinha 58 anos de idade. Estes eventos ocorreram em sua vida quando ele tinha entre 58 e 63 anos.

Por outro lado Jung fazia parte da reconstrução cultural dos anos 20 após a catástrofe da I Guerra Mundial. O principal interesse pessoal de Jung- inclusive naqueles anos- era nos símbolos de cura e integração, uma visão holística da psique com um potencial de totalidade equilibrada. Mais tarde ele denominou este conceito como “Mysterium Coniunctionis”. Creio que a grande popularidade de Jung nos anos 20 e 30, bem como depois da guerra- afora os desapontamentos- tinha a ver com algumas projeções sobre ele, de que ele conhecia algo a respeito do significado dos tempos bem como sobre a possível cura das dissociações e do caos, tanto nas sociedades como nos indivíduos. Ele era visto como um sábio. Talvez ele tenha ficado (como nós costumamos dizer) inflado por todas estas projeções. Algumas vezes ele falava sobre questões importantes a partir de seus próprios preconceitos e pressupostos pessoais, ignorando sua experiência analítica. Ele era um grande homem com uma grande sombra. Em alguns aspectos e momentos, Jung não estava à altura de sua própria psicologia.

O ano de 1930 começa com a fundação dos encontros de Eranos em Ascona, e com a eleição de Jung como Presidente Honorário da “Allgemeine Deutsche Arztliche Gesellschaft fur Psychotherapy”–GGMAP- uma associação de várias correntes psicoterápicas.

Em dezembro de 1931 em Berlim, os seguidores de Jung fundaram a Associação Berlinense C.G.Jung de Berlim -que foi a predecessora da atual Associação Alemã de Psicologia Analítica -DGAP-. Em 1932 Jung encontrou W. Pauli, o físico quântico que posteriormente ganhou o Premio Nobel, encontro que levou a uma colaboração sobre o principio da sincronicidade.

Então chegamos ao ano de 1933. Em Janeiro o partido de Hitler tomou o poder político após as eleições e imediatamente começou uma campanha de assassinatos de adversários políticos, artistas, banindo a cultura Judaica, queimando livros e realizando eventos de massa hiptonizantes.

Em Junho do mesmo ano Jung deu um seminário em Berlim (uma visão geral sobre sua Psicologia Analítica). O Professor Heinrich Zimmer, especialista em Hinduismo, deu uma palestra sobre” Psicologia da Yoga”.

Um dia antes do seminário, Jung deu uma entrevista na Radio, seu entrevistador era Adolf Weizsacker, um Junguiano e mais tarde membro da NSDAP (o partido nazista de Hitler N.T.). Entre outros assuntos, Jung falou sobre o “vigor juvenil” da Alemanha, “Volk”, (pessoas, nação), mas também sobre os perigos da sugestão de massas e de “seguidores hipnotizados” (scharenweise hypnotisierte mitlaufer). Falou também sobre o “Führer”, o principio da liderança.

Uma citação:

Não quero ofendê-los, mas tenho que ler o que se segue:

“Como Hitler recentemente afirmou, um líder deve ser capaz de ficar só e precisa ter a coragem de seguir em frente. Mas se ele próprio não se conhecer, como será capaz de liderar os outros? Assim, o verdadeiro líder é aquele que tem a coragem de ser ele mesmo, (Mut zu sich selbst) não apenas para os outros, mas que possa antes de tudo, olhar em seus próprios olhos (der vor allem sich ins Auge blicken darf)”.

Este pronunciamento oficial, do famoso professor suíço Jung no radio, logo depois da tomada de poder político (Machtubernahme) e da queima de livros, é no mínimo estranho. Mas a coisa fica ainda pior. Talvez ele quisesse expressar algo a respeito do perigo da sugestão de massas e rituais mágicos, ou talvez quisesse mandar uma mensagem a Hitler, que certamente ouviu a entrevista, sobre a auto consciência (olhar-se nos próprios olhos). Se esta era a idéia de Jung, era incrivelmente ingênua. O entrevistador, Weizsacker, parece ter achado a afirmação como uma critica política incorreta dirigida a Hitler e mudou a direção da entrevista imediatamente. Passou então a perguntar a Jung questões sobre seu tema favorito: as diferenças entre  a sua própria teoria e as psicologias de Freud e Adler. Jung caiu na armadilha sem perceber e sem indignação, mas isto não era ingenuidade, seguiu-se uma passagem chocante e repulsiva sobre o contraste entre uma criatividade alemã oculta e os reducionismos Freudianos à sexualidade e Adlerianos ao complexo de poder.

Creio que este pronunciamento oficial na radio foi o começo da carreira de Jung como  “Präsentierarier” (escudo Ariano Alemão) do movimento psicoterapeutico na Alemanha Nazista. Foi obviamente fácil usá-lo para esta função. O sistema precisava de psicoterapeutas, mas seguindo a mania anti-semita de Hitler, tudo o que era judaico deveria ser proibido e erradicado.

Agosto – O mesmo ano, 1933: O primeiro encontro de Eranos ocorreu em Ascona, na Suíça. O tema era “Yoga e Meditação no Oriente e Ocidente”. Jung seguiu seus interesses introvertidos e apresentou um trabalho sobre Mandalas pintadas por seus pacientes – “Símbolos do Processo de Individuação”. O desenho de Mandalas pessoais veio a ser uma das técnicas psicoterapicas favoritas Junguianas naqueles tempos. Estes desenhos podem ter um efeito muito estruturante e equilibrador da psique

Mais tarde, no mesmo ano de 1933, o presidente da “GGMAP” (Associacao Medica Geral de Psicoterapia N.T.) Prof. Kretschmar, renunciou à sua posição e em setembro, o cidadão Suíço, Jung, até então Presidente de Honra, foi escolhido pela assembléia como seu sucessor. Sendo estrangeiro, tornou-se então presidente da agora denominada “Associação Internacional Geral de Medicina Psicoterápica, IGMAP”. Jung disse que havia sido convocado a auxiliar a sobrevivência da Psicoterapia e da Psicanálise na Alemanha. Citou Freud X “O futuro da Psicoterapia será decidido na Alemanha”.

A presidência da Sociedade Alemã foi assumida pelo Dr. Mathias Göring, um membro da NSDAP(Partido Nazista N.T.) e primo distante do Reichsmarschall Herman Göring. O grupo alemão tornou-se, passo a passo, uma assim chamada organização, co-coordenada (gleichgeschaltet).

No prefacio do primeiro volume do Zentralblatt, Jung publicou o seguinte: (tradução do autor):

 “As reais diferenças existentes entre a Psicologia Germânica e a Psicologia Judaica não devem ser obscurecidas, e isto será muito produtivo para a abordagem cientifica”. (A costumeira tradução inglesa deste trecho não esta correta. J.R.), seguindo: “Em psicologia, existe, mais do que em outras ciências (Wissenschaften), uma “equação pessoal” que se não for observada será seguida pela falsificação dos resultados tanto na prática como na teoria. Mas, como quero enfatizar, isto não quer dizer nenhuma depreciação da Psicologia Semítica. Assim como não significa nenhuma depreciação da mentalidade Chinesa, se estivermos falando da psicologia especifica do oriente distante”.

No fim deste curto texto Jung enfatiza a importância da totalidade da psique que contém mais do que resíduos patológicos ou unicamente pessoais.

Dr. Göring escreveu no mesmo volume internacional do Livro do Ano, que todo Psicoterapeuta alemão deveria ler o livro de Hitler “Mein Kampf”. Jung ficou perturbado e afirmou ter sido abusado por Göring. No entanto, devemos notar que o prefácio escrito por Jung ia na mesma direção da entrevista na radio em Junho, ou pior: comparar a assim chamada psicologia “Semítica” com a assim chamada psicologia “Chinesa” significa também, retirar a primeira do contexto comum europeu. Devemos nos lembrar o que Hannah Ahrendt disse após o Holocausto- classificar pessoas em categorias é o primeiro passo de segregação

O ano seguinte, 1934: Em Janeiro, Jung publica um artigo no Livro do Ano da IGMAP, “Sobre a presente situação da Psicoterapia” que provoca protestos mesmo entre amigos e seguidores mais próximos dele como James Kirsch e Erich Neumann. Neumann, morando ainda na Suíça, escreveu-lhe: “Acredite em mim, como Judeu, eu amo (liebe durchaus) as propriedades criativas alemãs (das Germanisch Keimhafte), até aonde eu possa ver, mas a equação “Nacional-Socialismo = (igual) Ariano Germânico” é fatal, errado e não posso entender como chegou a isto e se você deve tratar disto. Talvez seu erro de julgamento seja o resultado da ignorância geral sobre as coisas judaicas e do horror medieval a elas, que leva-nos a conhecer tudo sobre a Índia dos últimos 2000 anos e nada sobre Chassidismo dos últimos 200 anos”.

Enquanto isto o regime Nazista tomou conta de todos os aspectos da vida política e cultural na Alemanha. Termos e pensamentos psicoterápicos Freudianos e Adlerianos foram oficialmente banidos no Instituto de Berlim, que havia sido transformado em “Instituto Alemão de Estudos Psicológicos e Psicoterápicos”. O “Deutsche Seelenheilkunde” (estudo dos processos mentais e emocionais N.T.) deveria substituir as abordagens psicanalíticas e psicoterapicas. Os analistas Judeus assim como os médicos Judeus perderam suas permissões de prática na Alemanha. Alguns deles deixaram a Alemanha nos últimos momentos. Entre os refugiados Junguianos estavam James Kirsch, Erich e Julie Neumann, Ernest Bernhard, Heinz Westmann, Gerhard Adler e sua esposa e Max Zeller.

Com efeito, no congresso da IGMAP de Maio de 1934, em Bad Nauheim, Jung deixou claro que os colegas Judeus que haviam perdido seu status de membros na Sociedade Alemã, poderiam tornar-se membros da Sociedade Internacional IGMAP para salvar seu status profissional e social. (o assim chamado estatuto Rosenbaum, por ter sido formulado pelo advogado Judeu de Jung, Wladimir Rosenbaum). Este fato será o que Jung, no futuro, sempre mencionava para demonstrar seu não Anti-semitismo. Mas neste mesmo período de tempo, Jung escreveu cartas com um tom estranhamente irônico e anti-semita para alguns de seus colegas Alemães. Em uma carta para Kranefeldt Jung pergunta: “O que ocorre com os médicos alemães que sempre acabam se apaixonando pela Anima Judia?” (Devemos nos lembrar de Sabina Spierlrein).

Em Zurich, Jung foi abertamente acusado por Gustav Bally, um psicanalista que havia emigrado, de simpatizar com o regime Nazista. Jung defendeu-se e explicou-se assim: “Não sou um inimigo do povo judeu, mas eu não concordo com Freud”. “Se Freud tivesse sido mais tolerante com a idéia dos outros eu teria permanecido ao seu lado”. (carta a Cohen, 26 de Março de 1934). Jung também escreveu que queria deixar a presidência da IGMAP o quanto antes.

Em agosto de 1934 na conferencia da IPA em Lucerna, Ernest Jones afirmou que seria fácil providenciar um protesto indignado contra o tratamento dado aos colegas Judeus na Alemanha, mas que “isto seria certamente inútil e talvez prejudicial”. A questão por traz disto parece ser o problema do posicionamento político dos analistas e de suas associações em geral, bem como da concilicacao / ou resistência política. Até onde posso ver, este era também o problema da IPA. Os poucos analistas que praticavam uma resistência ilegal, eram vistos como perigosos para seus pacientes e para a sobrevivência da psicanálise e da psicoterapia na Alemanha. (segundo Edith Jacobson, Rittmeister).

Antes de continuar quero fazer a seguinte declaração: Esta claro para todos nós que Jung cometeu um certo numero de grandes e imperdoáveis erros. Obviamente ele tentou ajudar a sobrevivência da psicoterapia na Alemanha Nazista tomando para si o comando da Associação e a transformando em uma Organização Internacional-favorecendo assim um suporte institucional para os colegas Judeus. No mínimo ele atuou com um sentido conciliador-não fazer nada que pudesse ser entendido por Hitler como uma provocação. Mas Jung usou a mesma linguagem. Ele falou sobre diferenças no background psíquico, (antecedentes, requisitos, capacidades, fundamentos, formação, cultura, perfil, passado, procedência N.T) dos (assim chamados) Judeus e (assim chamados) Alemães na época em que os Nazistas iniciavam seu programa racista de genocídio.

Jung estava obviamente impressionado (eu não diria fascinado), pelo menos no inicio dos anos 30, pelo que ele entendeu como a constelação de um padrão arquetipico criativo na bastante difícil situação psicológica, social e política da Alemanha.

Os anos 20 foram uma época muito confusa na Alemanha: -perder a guerra e ter as horríveis experiências com ela, o desapontamento depois do tratado de Versailles, a perda de orientação após a renuncia do Imperador, a crise econômica com milhões de desempregados, e a atmosfera geral de confusão, desconfiança e paranóia.

No entanto, Jung com certeza não era um nazista. Ele sempre enfatizou a importância do individuo, o processo de Individuação e a importância da Consciência. Portanto ele absolutamente não era a favor dos movimentos de massa e sempre alertou sobre os possíveis perigos dos movimentos hipnotizantes de massa. (os “scharenweise hypnotisierte Mitlaufer”). O inconsciente tem, em sua concepção, tanto aspectos construtivos como aspectos perigosos e destrutivos. Portanto o ego consciente com sua moral e posicionamento ético é essencial. Isto significa Individuação. Mas o cerne do comportamento ético- para os Junguianos- não é apenas intelectual, mas também o reconhecimento consciente, se não a integração, por cada individuo, de nossa própria sombra.

Os itens básicos da Psicologia Analítica são radicalmente incompatíveis com qualquer tipo de totalitarismo.

Desde o inicio o conhecimento de Jung sobre as pessoas e sobre a Psicologia Analítica deveria tê-lo levado a outras conclusões – deveria tê-lo levado a uma resistência radical ao Nazismo.

Em suas publicações de 1933 e 1934, no entanto, Jung mostrou-se como alguém que no mínimo não estava informado sobre o que ocorria sob o regime Nazista. Talvez ele de fato quisesse salvar a Psicoterapia na Alemanha Nazista, mas talvez ele também quisesse trazer sua própria Psicologia para a primeira linha. Se foi este o caso, sua posição oportunista foi realmente problemática. Se, foi este o caso, esta foi a pior coisa que ele poderia ter feito, mesmo não estando consciente do quanto dava suporte ao regime Nazista com seus pronunciamentos públicos.

Nos anos seguintes, outros aspectos da personalidade de Jung vieram à tona: Ele evitou confrontar-se com o sofrimento das vitimas do regime Nazista. Parece que ele esquivou-se de qualquer sentimento de empatia, declarando-se um diagnosticador independente. Penso que ele deixou-se tragar cada vez mais pela política conciliadora Suíça.

O destino das vitimas da perseguição racista na Alemanha foi um taboo geral na Suíça. As fronteiras Suíças estavam fechadas para os refugiados e vários deles foram enviados de volta para a Alemanha.

1935: Jung é nomeado Professor na ETH ( Swiss Federal Institute). Está agora com 60 anos. Profere palestras na Inglaterra com grande sucesso. Em Zurique engaja-se em seminários como p.ex. “Zaratustra” – “busca do significado, os bons e maus aspectos da imagem de Deus, os problemas básicos da cultura Alemã tal qual personificado no Fausto de Goethe e em Nietzche.” Parece que ele estava totalmente fora da realidade política que o cercava.

A assembléia geral da IPA de dezembro de 1935 sugeriu aos membros judeus da  Sociedade Alemã de Psicanálise DGP que renunciassem a sua filiação na sociedade para salvar a organização. Seguindo o exemplo dado por Jung em Bad Nauhein, filiações individuais na Sociedade Internacional deveriam ser possíveis.

1936: Em Março, Jung publica “Wotan”, um ensaio sobre a imagem arquetípica de um sopro arquetipico do Deus Vento, cujo reaparecimento poderia ser notado no real estado de confusão e revolução da Alemanha. É um texto estranho e sarcástico, cheio de ressentimentos. Nem é um texto que dá suporte ao ditador, mas também não é um texto contra ele. Escrito num estilo “grotesque” (estranho, torto, N.T.), fala sobre como emergem os mitos.

Pouco tempo depois, Jung é convidado para ir aos Estados Unidos para receber um titulo honorário de doutor na Universidade de Harvard. Este fato foi realmente memorável. Encontrou Mary Mellon, que alguns anos depois, juntamente com Mary Bancroft, engendrou o contato de Jung com Allan W. Dulles, o líder Europeu da OSS, posteriormente chefe da CIA. De 1942 em diante, Jung mantém uma relação de cooperação com a OSS.

Jung era visto como aquele que melhor entendia Hitler e os Alemães. Dulles disse mais tarde: “Ninguém jamais saberá o quanto Jung fez pelos aliados durante a guerra”.

No verão de 1936, Franco começou a guerra civil Espanhola, por meio de uma revolta. A Alemanha Fascista apoiou-o imediatamente. O governo Suiço, sob o comando do ministro do exterior Giuseppe Motta (1920-1940) era abertamente a favor de Franco e dos Nazistas. Então em agosto de 1936 o Swiss Bundesrat (Federação Suíça-N.T.) editou leis contra qualquer tipo de apoio à Espanha Democrática. Na seqüência havia uma censura rígida na Suíça, contra qualquer tipo de ação que pudesse ser entendida como critica ou provocativa à Hitler.

 Creio que isto não deixou de ter influencia sobre Jung. A maior ansiedade política na Suíça era com relação ao sistema comunista brutal de Stalim. Os regimes fascistas na Alemanha, Itália e Espanha eram em geral vistos como uma proteção contra Stalim. Podemos levar em conta também, que todos os outros paises democráticos do ocidente seguiam uma política oficial conciliatória até 1938/1939. Todos participaram das Olimpíadas de Berlim em 1936, um dos maiores eventos de massa de Hitler.

1937: Jung vai a Berlim falar de Arquétipos. Vê Hitler e Mussolini de pé numa tribuna num ritual de massa. Ele afirma: “Os arquétipos estão andando nas ruas aqui”. Então ele está de novo nos Estados Unidos proferindo palestras na Universidade de Yale. Posteriormente, em sua viagem à Índia por algumas semanas (junto com Fowler McCormick), Jung falou sobre Alquimia, visitou os lugares sagrados de Sanchi e estudou o problema do bem e do mal no Cristianismo e no Budismo. Nessa viagem Jung obteve o titulo de Doutor Honorário das Universidades de Allahabad e Benares.

1938: Em Outubro, pouco antes do pogrom anti-semita chamado “Kristallnacht” (noite dos cristais N.T.), Jung deu uma entrevista ao jornalista americano H.R. Knickerbocker: “Diagnosticando os Ditadores: Hitler, Mussolini e Stalim”. O jornalista perguntou: “Que tipo de homens são estes que controlam milhões de pessoas e que estão mudando o mapa da Europa hoje em dia-Hitler, Mussolini e Stalim?”

Jung disse: “Na Alemanha tudo acontece por revelações. Hitler sempre segue sua – Voz- que é a-Voz do complexo de inferioridade Alemão. Ele representa o Inconsciente Coletivo da Alemanha”. Jung compara Hitler (na versão original em Inglês da entrevista) com alguns pacientes que ouvem vozes. “Hitler é a Voz”. O complexo de inferioridade Alemão é o complexo do irmão caçula, que sempre chega atrasado na festa. Este complexo cultural era como Jung disse, ativado pela derrota da I Guerra Mundial com a subseqüente depreciação e desvalorização da Psique Alemã assim como de sua moeda. Jung enfatiza as práticas mágicas de Hitler e seu partido como rituais hipnóticos de massa. Hitler ficou inflado com as projeções coletivas e atuou como líder e “curandeiro” no pesadelo coletivo. No entanto Jung não menciona nem o terror nem o sofrimento das vitimas deste terror.

 A entrevista de Knickerbocker é uma vez mais uma provocação. O mais escandaloso para mim é a atitude de Jung de um diagnosticador independente. Jung não menciona o terror nem a política criminal do regime; nunca fez nenhuma menção do que ocorria às vitimas ou aos oponentes de Hitler. Parece que, tanto o diagnóstico, como suas interpretações, são uma expressão de defesa e resistência.

Jung era um irmão caçula na psicanálise. Sua ênfase no complexo de inferioridade alemão descreve algo realmente importante, mas também parece que ele próprio projetou seus complexos de inferioridade no complexo Alemão.

Esclareçamos o diagnostico que Jung fez de Hitler como alguém inflado pelas projeções do povo. Ele atuava como um “profeta” sem moral nem limites éticos. Em nossos termos concluiríamos: Hitler era mentalmente doente, era um psicótico e um criminoso. Assim a entrevista foi imediatamente compreendida e como reação a ela, Jung em 1939, foi colocado na lista negra dos Nazistas. Seus livros não podiam mais ser vendidos nem na Alemanha nem na França ocupada.

Perguntado sobre como os aliados poderiam deter Hitler, Jung disse: “Deixe-o ir para o leste, para a Rússia (…). Nosso interesse nisto é simplesmente salvar o oeste”. Jung também fez uma menção aos paises ocidentais com suas políticas conciliatórias: “Nenhuma nação mantém sua palavra”. Também disse: “a América deve manter seu exército bem armado para ajudar a manter a paz mundial, ou para decidir a guerra se for o caso”- “Vocês são a ultima esperança de democracia no Ocidente”.

Sem saber o que fazer

A ultima parte da entrevista de Knickerbocker é muito significativa. Ele escreveu:

“O telefone tocou. O estúdio estava silencioso e o dia nublado, pude ouvir um paciente gritando que um furacão em sua cama estava prestes a arrastá-lo, “deite-se no chão que você estará a salvo” aconselhou o seu medico. É o mesmo conselho que o sábio médico oferece agora à Europa e América, quando o vendaval da ditadura balança as fundações da Democracia”.

Era 1938 e Jung, não tinha idéia do que fazer.

No mesmo ano de 1938, o ano do pogrom racista denominado “Kristallnacht”, a Suíça deixou de conceder permissão de trabalho a estrangeiros. Em decorrência deste evento, muitos refugiados da Alemanha tiveram que sair da Suíça para outros paises. Entre eles estava Michel Fordham, que voltou a Londres. Depois deste pogrom Erich Neumann mandou uma requisição urgente a Jung para que fizesse uma declaração aberta  para ajudar os judeus na Alemanha. Jung escreveu a Erich Neumann em Tel Aviv: “Estou muito ocupado arranjando vistos e passagens para todos os meus amigos judeus para poderem ir para Inglaterra e América”. A anexação da Áustria pelo Terceiro Reich trouxe um perigo imediato para Freud e sua família. Fala-se que Jung  mandou o filho de Riklin para Viena com dinheiro mas que Freud “ não quis aceitar ajuda de seus inimigos”. Ele deixou Viena em direção a Londres em Junho.

1939: a Guerra começa. Hitler e Stálin assinam seu tratado de não-agressão. Após a ocupação da Polônia em 1939 e da Franca em 1940, Hitler estava no cume da sua carreira e popularidade. A guerra contra a Rússia começou em 1941.

Em 1939 Freud terminou seu “Moises e Monoteísmo”. Na Suíça, Jung foi informado que seu próprio nome estava na lista negra dos Nazistas, e que o exército alemão atacaria a Suíça muito brevemente. Os suíços sentiam que estavam cercados de exércitos hostis por todos os lados. Jung mandou sua família para as montanhas. –Freud morreu em Londres em 23 de Setembro de 1939.

Tentar entender não significa perdoar

Jung obviamente tinha uma personalidade muito complexa.

Concluindo

  1. Quando ele tomou a presidência da sociedade Médica Geral de Psicoterapia em 1933 – talvez quisesse fazer o melhor para a psicanálise, – ou talvez visse a oportunidade de levar sua teoria da Psicologia Analítica para um primeiro plano. Se a segunda hipótese é a verdadeira, essa atitude foi oportunista e uma forma de apoio ao regime Nazista.
  2. Seu discurso anti-semita sempre esteve ligado à sua crítica à personalidade de Freud e à psicanálise Freudiana. Ele não era um anti-semita em geral, mas mostrou atitudes anti-judaicas mesmo contra pacientes seus (como por exemplo com Rosenbaum, ou talvez tenha começado muito antes com Sabina Spielrein- “ Porque Médicos Alemães sempre se apaixonam por Animas Judias?”
  3. O que Jung fala na entrevista à Knickerbocker sobre o apelo mágico de Hitler e do complexo de inferioridade alemão faz algum sentido. Vista da Suíça, a emergência do regime Nazista a partir da Depressão na Alemanha, era algo impressionante. Mas talvez Jung estivesse projetando seu próprio complexo de inferioridade nos alemães. Os Nazistas puderam facilmente usá-lo inapropriadamente como um proeminente psicólogo “Ariano” estrangeiro em sua propaganda.
  4. Talvez a forte transferência de Jung sobre Freud tenha se tornado uma “equação pessoal” para ele. No inicio do regime Nazista ele era o “Prasentierarier” (o escudo Ariano Alemão) do movimento psicoterapeutico, assim como havia sido o escudo Cristão para o movimento psicanalítico anteriormente.

Gostaria agora de acrescentar alguns aspectos das discussões entre os Junguianos Alemães:

Falamos sobre os complexos pessoais de Jung e sobre seus conflitos com Freud e Abraham- (um triângulo). Falamos sobre suas fortes necessidades pessoais por símbolos de cura e pelo sentimento de inteireza na psique. Também falamos da sua cooperação com a Inteligência americana e com os aliados.

Uma outra questão é a questão da ética.

Erich Neumann, o amigo e discípulo de Jung, em seu exílio na Palestina, escreveu um livro, “The New Ethic” (A Nova Ética), como uma crítica moral a Jung, alegando que todos somos também responsáveis pelo que fazemos inconscientemente. Jung ajudou Neumann a publicar esse livro em 1949. Parece que ele entendeu a mensagem e escreveu seu próprio livro “Resposta a Jó” (1952), enfatizando que somos todos responsáveis, mesmo por nossas imagens de Deus.

Não e fácil falar sobre esses temas, e seguramente não é fácil para vocês ouvir tudo isto.

Obviamente Jung em 1933 não estava apto a ver (tanto quanto ninguém mais naqueles tempos) o que estava por vir. Em “ After the Catastrophe”  -1945/1946- (Após a Catástrofe) ele escreveu sobre a psicose de Hitler como “ pseudologia phantastica”, e sobre sua sombra bem como sobre a sombra coletiva- “em Hitler, cada alemão deveria ver sua própria sombra, seu pior perigo”- (entrevista à BBC em 3 de Novembro de 1946). Jung não era um alemão e este pronunciamento novamente enfatiza esta distância. Também falou sobre a culpa coletiva Suíça, mas sua fórmula de “culpa coletiva” parece ser um modo de evitar ver e reconhecer sua culpa pessoal.

Gershom Scholem reporta uma outra impressão de Leo Baeck ( o rabino chefe de Berlim antes da guerra), que sobreviveu ao campo de concentração de Theresienstadt com 70 anos. Jung o visitou quando a guerra terminou e após uma longa discussão, Jung confessou: “Sim, eu escorreguei” (Ich bin ausgerutscht). Baeck aceitou a confissão de Jung e até mesmo participou em 1947, como conferencista em Eranos. Gershon Scholem que foi um conferencista em Eranos de 1949 a 1966 escreveu mais tarde em uma carta a Aniela Jaffe, que ele não queria nem aumentar nem reduzir a imagem de Jung. Que frente a grandes homens nos facilmente caímos em admiração cega assim como tendemos a exagerar seus erros.

Reposta a Jó

O maior texto de Jung sobre seus anos mais sombrios foi Resposta a Jó (1952). Jung estava com 77 anos. Escreveu sobre o lado sombrio do Arquétipo de Deus. Jung tentava entender as conseqüências da imagem Cristã de Deus da qual o lado negro é suprimido e excluído. Esse livro tornou-se uma leitura essencial para estudiosos de Psicologia Analítica nas décadas seguintes.

“O livro Resposta a Jó, representa, como escreveu E.Edinger em 1986, um encontro decisivo do Ego com o Self, a personalidade Maior . O Ego fica ferido com este encontro que provoca uma descida ao inconsciente, a nekyia. Porque Jó insiste no questionamento do significado da experiência, sua persistência é recompensada com uma revelação divina. Ao Ego que assim age, firmemente ligado à sua integridade, é concedida uma realização do Self”.

Isto pode ser lido como uma critica ao comportamento de Jung nos anos 30, como escreve Edinger:

“Poderíamos perguntar o que Jung quer dizer com o “Comportamento moral de Jó”? Penso que ele se refere à recusa de Jó em aceitar responsabilidade por eventos que ele sabia não ter causado. A honestidade intelectual de Jó, sua lealdade à sua própria percepção da realidade, sua integridade de manter a distinção entre sujeito e objeto, entre homem e Deus-tudo isto contribuiu para compor os comportamentos morais de Jó, que acaba forçando Deus a se revelar”.

Isto então é um grande desafio: manter a distinção entre sujeito e objeto.

Não será possível entender os progressos de Jung se não tentarmos entender o que aconteceu com os Alemães e com Hitler. ‘E muito difícil falar disto com a onipresente sombra do que aconteceu com todos os judeus e outras pessoas assassinadas pelos Nazistas e pelos soldados Alemães.

Estas são algumas reflexões sobre o cerne desta escuridão. Espero que elas não sejam mal compreendidas como uma espécie de justificativa para Jung. Tentar entender não é perdoar. Mas mesmo “entender Jung” não é fácil, especialmente em tempos tão horríveis como do Nazismo e da escuridão cultural dos anos 30, da psicose alemã e do começo do Holocausto.

Analise Freudiana e Junguiana

Gostaria de oferecer um comentário:

Quando vejo fotos da guerra e de Campos de Concentração, minha capacidade de reação emocional fica geralmente bloqueada pela inacreditável crueldade do que aconteceu. Sei que e uma experiência ligada ao trauma individual e coletivo. Ademais a língua Alemã da época estava contaminada pelo jargão Nazista. Conheço bem o impulso de olhar para o lado e evitar o confronto. Isto provavelmente é bem similar ao que o Dr. Dieckmann experenciou na Guerra. Durante a ditadura tratava-se de sobreviver. Uma das maneiras era a dissociação e congelamento de reações emocionais. Tentamos hoje integrar o que aconteceu, assim como revitalizar os sentimentos e emoções. Somos felizes de viver nos dias de hoje e termos essa oportunidade e tarefa.

Para arcar com um trauma, como sabemos hoje em dia, imagens e visualizações positivas são muito importantes.

A recuperação emocional frequentemente será um estagio mais tardio do processo. A Psicologia Analítica Clássica sempre foi muito próxima das imagens, mas teve dificuldades em lidar com as emoções. Provavelmente isto se deve em parte à equação pessoal de Jung, mas tem um valor especial. A Psicologia Junguiana de hoje, especialmente se compreendida como uma troca intersubjetiva, e mais cálida e próxima das emoções pessoais e relacionais, nos aproxima de algumas abordagens psicanalíticas contemporâneas. A analise Junguiana teve que ficar mais atenta aos problemas éticos. O comportamento ético não emerge de imagens arquetípicas ou de um inconsciente que naturalmente contém o bem e o mal. A própria história de Jung nos ensina a prestar atenção à importância de um complexo de ego consciente e em bom funcionamento. Se você simplesmente não condenar Jung, mas tentar entender o que a sua psicologia significava para ele e para seu tempo:- numa compensação para o colapso pessoal e da ordem política social e emocional européia, de confusão paranóide e esquizóide dos regimes totalitários-e o que ela pode significar hoje para nós, então podemos perceber o quanto a Psicologia Analítica pode ser um instrumento útil e necessário a todas as Psicologias dinâmicas, assim como pode estar em relação com a psicanálise Freudiana. A Psicologia Analítica tem muito a oferecer.

A psicoterapia é sempre uma resposta aos problemas de seu tempo. O trabalho de Jung com os sonhos, as técnicas de imaginação, a teoria dos complexos culturais, do conceito do processo de individuação como elementos básicos da Psicologia Analítica, pode nos ajudar a entender os problemas básicos de nossos pacientes e de nós mesmos hoje. Não se trata apenas de sobrevivência, mas também de uma integração emocional e comportamento ético.

Minha esperança é a de que algum dia, possamos parar de comparar as falhas em Freud e Jung, e deixemos de manter vivos esses conflitos. Assim, seus conceitos tal como se desenvolveram até o presente, em suas diferentes abordagens e pontos de vistas, possam em conjunto ajudar-nos a oferecer, aos nossos pacientes, o que eles realmente necessitam: sobreviver num mundo desorientado, integrar suas emoções e viver como indivíduos responsáveis e em relação uns com os outros.


Esse artigo foi elaborado para o painel que ocorreu durante o  Congresso da IPA( Sociedade Internacional de Psicanálise), em 25 de Julho de 2007 em Berlim: `   / | “Freud e Freudianos/ Jung e Junguianos nos anos 1930 e durante o Regime Nazista”.

Co-Chairs:  Alain Gibeault (Paris Psychoanalytical Society, IPA); Christian Gaillard (French Association for Analytical Psychology, President of IAAP).

Keynote speakers: Thomas Aichhorn (Viennese Psychoanalytical Society, IPA); Joerg Rasche (German Society for Analytical Psychology, IAAP)

Quero agradecer  Tom Kirsch e Joe Cambray pela ajuda. Tom enviou-me alguns documentos e artigos, tanto sobre cartas trocadas entre seu pai James Kirsche e C. G. Jung. Joe foi de muita ajuda clareando e corrigindo tanto meus pensamentos como meu ingles. Também quero agradecer a  Hildemarie Streich,de Berlin, por suas memórias daqueles dias sombrios, bem como por seu incentivo,e Ludger Hermanns e Regine Lockot pelo apoio.

Escrevo esse texto em memória de Arvid Erlenmeyer.

Literatura:

Não posso listar toda literatura que li sobre os pronunciamentos políticos de Jung e seus contextos, a maior parte deles na língua Alemã. Selecionei alguns que se seguem:

  •  Bair, Deirdre: C. G. Jung. Eine Biographie. Knaus, München 2003 (engl.:  Jung. A Biography. Little, Brown and Company, New York 2003);
  • Dreifuss, Gustav : Opferer und Opfer. Analytische Psychologie 16/1/1985;
  • Erlenmeyer, Arvid u.  von der Tann, Matthias (Hg) : C. G. Jung und der Nationalsozialismus, Texte und Daten. Im Auftrag der Deutschen Gesellschaft für Analytische Psychologie zusammengestellt und eingeleitet. Berlin 1991;
  • Erlenmeyer, Arvid: Jung und die Deutschen. Analytische Psychologie 1992;23: 132-161;
  • Gaillard, Christian (ed.): Jung et l’histoire, les années 30. Cahiers Jungiens de Psychoanalyse Nr.82, Paris 1995;
  • Gaillard, Christian : L’altérité au présent. In : Crise et histoire, Cahier Jungiens de Psychoanalyse Nr.96, Paris 1999;
  • Jaffé, Aniela : C. G. Jung und der Nationalsozialismus. Analytische Psychologie 16/1/1985;
  • Kirsch, James: Jungs sogenannter Antisemitismus. Analytische Psychologie 16/1/1985;
  • Kirsch, Thomas B.: Cultural Complexes in the History of Jung, Freud and their Followers. In: Kimbles, Samuel, and Singer, Thomas (ed.): The Cultural Complex. Contemporary Jungian Perspectives on Psyche and Society. Brunner-Routledge, New York 2004;
  • Lockot, Regine: Erinneren und Durcharbeiten. Zur Geschichte der Psychoanalyse und Psychotherapie im Nationalsozialismus, Fischer, Frankfurt/Main 1985;
  • Neumann, Micha: Die Beziehung zwischen C. G. Jung und Erich Neumann auf Grund ihrer Korrespondenz. In: Zur Utopie einer neuen Ethik. Kongressband Österreichische Gesellschaft für Analytische Psychologie, Wien 2005 (2006);
  • Roazen, Paul: The Exclusion of Erich Fromm from the IPA. Contemporary Psychoamalysis, 37(1):5-42, 2001;
  • Wilke, H.-J.: NS-Vergangenheit, ein Aktualkonflikt. Analytische Psychologie 16/1/1985.

Jörg Rasche, doutor em Medicina, nascido em 1950. Analista Junguiano, treinado em Berlim e Zurique (Sandplay therapy). Especialização em Medicina Psicoterapeutica, Psicanálise e Psicoterapia. Psiquiatria Infantil , trabalhando em Instituição e clinica privada com adultos e crianças em Berlim. Casado, com três filhos crescidos. Músico toca órgão e piano.

É professor no Instituto C.G.Jung de Berlim e atualmente presidente da Sociedade Alemã de Psicologia Analítica DGAP (membro da organização da DGPT e da Sociedade Internacional de Psicologia Analítica IAAP). Em Agosto de 2007 foi eleito Vice-Presidente da IAAP

Publicou artigos e livros sobre mitologia, psiquiatria infantil, o arquétipo paterno, criatividade, música e psicanálise.

Dezembro 2008