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O cotidiano está doente

O cotidiano está doente

Sylvia Mello Silva Baptista
Psicóloga, analista junguiana, membro da SBPA

A psicopatologia é um braço da Psicologia e da Psiquiatria cada vez mais na pauta do dia. Se há poucos anos a doença, física ou psíquica, era posta à parte, levada pela nau dos loucos, hoje parece espreitar em cada esquina, com seu rosto soturno, nas grandes cidades, em manchetes de jornais, na grande rede virtual, nos quatro cantos do mundo. O cotidiano adoeceu, e a saúde rema um pequeno bote em um mar insano. Nós psicoterapeutas, precisamos de deuses auxiliares, e dos braços fortes de nossos heróis internos para fazer acontecer e valer um sentido na correnteza.

Estamos falando da pós-modernidade. Esta palavra tão repetida nos dias atuais, traz uma série de conteúdos da maior importância para a nossa reflexão. Os valores se alteraram, o tempo se acelerou, o mundo se constituiu de fato em uma aldeia global, e o ser humano tem-se mostrado seu próprio predador, o pior de todos que pudéssemos supor. Mas a busca incansável de um sentido também é atributo do homem, e frente à maior desolação, a polaridade oposta parece acordar e querer se fazer valer. Se vemos uma falta absoluta de significado e uma desorientação generalizada das pessoas na contemporaneidade, em igual medida há uma procura intensa de algo que traga um alento e um rumo, uma presença mais marcante daquilo que Jung chamou de “religare”, o sentido religioso arquetípico no humano. É arquetípico porque é “arque”, antigo, e “típico”, porque um padrão. É do humano buscar uma razão maior da existência, tecer seu mito de criação, tentar compreender o mistério.

Os profissionais de ajuda, dentre os quais nos incluímos como analistas junguianos, nos vemos refletindo incessantemente sobre essas questões. Remamos contra a corrente da cultura, na tentativa de fazer valer a ideia de que a transformação do indivíduo promove a transformação do coletivo. A máxima “ao salvar-se um homem, salva-se a humanidade” é para nós um guia.

A discussão a respeito da constituição e do funcionamento dos indivíduos amplia nossos recursos de compreensão da alma humana, e proporciona mais instrumentos para que a transformação do que precisa ser modificado possa se dar. O acréscimo do olhar pelo viés da mitologia enriquece ainda mais esse movimento reflexivo. Nós nos esquecemos sempre, mas é bom lembrar, que a consciência é algo extremamente recente na história da humanidade. Cada reflexão que se acrescente a ela, acreditamos, alarga o horizonte, traz um pouco mais de luz e auxilia na construção de uma cultura, ação que se faz, a cada dia, mais necessária. 

1 Como se sabe, os doentes mentais, assim como os desajustados sociais na época da Idade Média, e até antes do nascimento da Psiquiatria Dinâmica e da revolução humanitária que se deu com a construção de asilos psiquiátricos, eram colocados em um barco e levados a alto mar, onde eram abandonados ao deus-dará. A essa embarcação cunhou-se o nome de “nau dos loucos”.