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A mordida da maçã e os transtornos alimentares

A mordida da maçã e os transtornos alimentares

Liliana Liviano Wahba
Psicóloga, PhD; docente da PUC-SP. Co-editora da Junguiana e da Psique em Foco. e-mail:lilwah@uol.com.br

A partir do momento em que Eva mordeu a maçã o desejo encorpou e não pôde mais ser ignorado. O mito fundador da cultura ocidental monoteísta repousa nesse primeiro ato de apropriação e de incorporação. Coube a mulher efetivá-lo, já que nela o corpo era inalienável. Coube ao homem a abstração e à mulher, a concretude. Primeiro, como mãe, e depois como interlocutora de alteridade representou para o homem o corpo matriz, e neste residia o pecado.

Pecado arquetípico da transgressão a Deus, que deixava de ser o todo poderoso nutridor perante o qual uma atitude passiva de eterna receptividade embalava a humanidade no seu berço dourado. Mito certamente, já que essa beatitude não se sustenta na antropologia.

Sustenta-se, quiçá, na ontogênese individual nos primórdios da fase uterina, registrando-se na atualidade possibilidade de sofrimento fetal a partir do 4º mês de gestação.

A fé cega é resquício desse mito, quando orações ao divino, olhos semi-cerrados e bocas entreabertas aguardam o maná celestial. De acordo com Jung a atitude religiosa é ativa e receptiva ao mesmo tempo: ativa na busca e no reconhecimento, receptiva na entrega. Cabe ainda diferenciar o que é dos deuses e o que é do humano.

O corpo, constituinte de nossa identidade histórica e terrena só podia ser da alçada de seu habitante, homem ou mulher. Aos deuses o corpo celestial, ao homem o material. Compreendeu-se, no entanto como: à mulher, o material. Assim, a mulher tomou a dianteira e apossou-se de seu corpo e, junto a ele, de seu desejo. A ousadia valeu-lhe o estigma patriarcal. Viu-se perante um paradoxo sem solução: trair a si e a sua materialidade, ou trair a dominância do espírito cego e surdo a apelos humanos.

A metáfora da mordida transpõe-se à oralidade e a sua satisfação básica ou impossibilidade de fazê-lo: estado de fome. Para compensar o vazio, a ingestão excessiva compensa – ainda que muito mal -, tudo aquilo que está em falta, insatisfeito.

Obesidade é um transtorno que atinge semelhantemente homens e mulheres; anorexia e bulimia incide mais em mulheres, ainda que nos últimos tempos cada vez mais homens manifestem esses sintomas. Sinais de igualdade de sexos, talvez. A mulher é castigada pela culpa e mortifica seu corpo. Deprime, impotente; engole todas as maçãs para depois vomitá-las ou se nega a mordê-las. Introjeta o castigo por ter ousado querer algo que não devia ou não podia: ser atraente, desejada, amada, admirada, conquistar e ser conquistada – em todos os sentidos.

Afastada do deus todo provedor, já que não se volta facilmente para trás após o ato da primeira mordida, restou-lhe a culpa por ter falhado em nutrir-se de modo satisfatório, de não ter digerido e incorporado a promessa contida naquela primeira maçã. O castigo se perpetua, de mãe para filha.

Outro mito da cultura ocidental é o mito grego das Danaides. Os irmãos Egito e Danao são, respectivamente, rei do Egito e rei da Líbia. O primeiro tem 50 filhos e, o segundo, 50 filhas. Há uma disputa e uma guerra entre ambos, e Danao exila-se em Argos onde se torna rei.  Após uma aparente reconciliação os primos querem casar-se com as primas, mas Danao convence as filhas a matar os cônjuges na noite de núpcias. Quarenta e nove matam os maridos; só uma se apaixona e o poupa: Hipermnestra ama Linceu. As 49 são condenadas a encher eternamente um tonel furado. Esse mito inspirou a tragédia  As Suplicantes de Sófocles.

Somos condenados a ter uma sede insatisfeita de nossos anseios, mas, apesar de humano, é castigo das mulheres. O homem é sacrificado pela vingança, a mulher condenada; a culpa de Eva, o corpo desejante e suplicante. Nesse mito o resgate possível se dá pelo amor que rompe com a tirania paterna, ainda que em proporção de um para cinqüenta. Na terapia desses transtornos o amor e a auto-estima, quando despertados, auxiliam a recompor um corpo desorganizado e destruído; de fato, em proporção longe da ideal.

Além de explicações epigenéticas e de estrutura de personalidade para compreender a dificuldade em reverter transtornos alimentares, os mitos da cultura e os imperativos imbuídos nela devem ser tratados, já que tais batalhas dificilmente se vencem individualmente.