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Virou anjo

Virou anjo

Silvia Regina Luz Avian

Peguei-me pensando, nessas últimas semanas, sobre o limiar divisor entre o santo e o humano. Como passamos de um lado a outro de forma tão rápida e eficiente?

Em meus devaneios de final de tarde, pensei em como uma pessoa boa vira uma bruxa má muito facilmente. Basta dizer um “não”, frustrando as expectativas de outra pessoa, para que se caia num abismo profundo e negro. Desgraças essas lançadas por meio de – na melhor das hipóteses – olhares gélidos.

Quanto menor a criança, mais fácil é vermos isso. Elas viram verdadeiros monstros a cada negativa ou interrupção de um desejo.

É difícil e chato domar essas ameaças de destruição pelos monstros soltos por perto. Há calúnias, xingamentos, fofocas, chantagens… Mesmo sabendo que existem tais monstros, nem sempre somos capazes de driblar os ataques. Ouvimos histórias diversas a esse respeito: há estudos, discussões, livros…

Há, porém, o inverso. Como um humano vira anjo?

Lembrei-me de uma piada que meu avô contava com certa frequência. Não sei se o repertório dele era pequeno ou se o repertório de piada para crianças era diminuto. Dizia mais ou menos isto:

Joãozinho fica sabendo que um homem havia morrido. Como nunca tinha visto um morto, resolve ir até a casa do defunto. Vai chegando perto do caixão e ouve uma pessoa que diz: “Morreu como um passarinho”. Não demora muito, outra: “Morreu como um passarinho”. E assim se seguem os mesmos comentários, até que chega um gaiato e pergunta ao Joãozinho de que o homem havia morrido. Ele, rapidamente: “De estilingada”.

Parece que a morte, às vezes, traz um ar angelical para a pessoa que se foi. Não é de todo incomum ouvirmos que a pessoa teria ido para o céu, numa alusão a sua bondade e, portanto, virara anjo.

Há pouco mais de dez dias, vimos atônitos o acidente aéreo que vitimou um candidato à presidência da República. Homem novo, 49 anos, pai de cinco filhos, sendo um deles portador da síndrome de Down.

Tristeza, comoção, susto, diante da morte que friamente veio e ceifou o futuro daquele homem cheio de energia.

Fiquei chateada, apesar de não conhecê-lo e nem ser meu candidato nas próximas eleições. Foi um susto e me colocou diante de uma verdade: a morte chega e é preciso viver cada dia, não jogando fora nenhuma molécula de oxigênio que respiro. Bem, esse é assunto para outra hora.

Voltando ao fato que relatei: vi na TV. pessoas chorando, a família recolhida, o burburinho esperado dentro das coxias do partido a que ele pertencia. Tudo dentro dos conformes.

Um dia se passou, dois dias se passaram e não demorou muito para o ser humano, Eduardo Campos, começar a se transformar em santidade.

Numa histeria geral, pessoas chorando, pessoas contando histórias sobre o ser humano fabuloso que ele era, pessoas que haviam visto pequenos sinais de um avô – também santificado no estado natal – que havia vindo buscar o neto querido para ser sua companhia.

Em questão de dias, vimos romarias por Recife e uma família sem muito espaço para chorar e velar seu morto. Tudo muito grande para meus olhos humanos.

Dez dias depois, vejo e ouço, nos programas políticos, o mau uso da imagem de Eduardo Campos santificado. Numa tentativa desesperada pelo voto do cidadão, vejo pequenos monstros travestidos de humanos.

Como é necessária a ética! Perdê-la é muito perigoso.

Virar santo e monstro não é difícil. Para ser santo, alguém nos coloca, para virar monstro é a gente que se coloca.